Os monstros do heavy metal se apresentaram em Porto Alegre no último fim de semana
O calor porto-alegrense deste 9 de novembro, sexta-feira, apesar de nada convidativo, não foi o suficiente para conter a aglomeração de devotos enfileirados por uma quadra na Cidade Baixa. O Bar Opinião – que ainda há poucos dias sediava, de casa cheia, nada menos que os
Irmãos Cavalera voltando às origens brutais do Sepultura –, mais uma vez seria palco de um encontro de peso, desta vez internacional: Kreator e Arch Enemy, dois cachorros grandes do heavy metal mundial.
As bandas vieram somar para uma grande turnê, pela América Latina, ao lado do revigorado Helloween. Desta vez, este (agora) septeto (!) alemão nos deixou de fora (até porque ano passado estiveram no Brasil com o mesmo show, tocando em Porto Alegre no próprio Halloween, 31/10/17). Embora tenha sido interessante misturar os soberanos do melódico com figurões do thrash e do “death melódico”, a sentida ausência do Helloween no Liberation Fest pelo menos fez jus ao motto “menos é mais”, proporcionando setlists prolongados para os ilustres remanescentes. Esse é o contexto que permitiu aos porto-alegrenses verem dividir a noite Arch Enemy e Kreator, dois monstros do heavy metal de nossos dias, headliners de grandes festivais, reis de seus próprios gêneros, e de exaltada popularidade no Brasil. Os portões se abriram a partir das 18h30, com o primeiro ato, Arch Enemy, previsto para as 19h30.
De casa tomada, o Arch Enemy deixou o camarim com 20 minutos de atraso, e a opulenta montagem de palco, com bandeiras, banners e background, foi uma resposta à altura ao meio-palco que lhes fora ofertado. Foi a primeira vez do quinteto sueco na capital gaúcha, o que justificou a ansiedade e expectativa generalizada, já que até quem não acompanha sua longa carreira (formada em 1995, contando com apenas um membro original) reconhece que são uma grande banda.
Ao tempo aludido, soou nos PAs a faixa introdutória do long lenght mais recente da banda, Will to Power (2017), do qual foram extraídas 7 faixas para compor o set. A banda deu o start com a excelente “Blood in the Water”, resolvendo duas questões para os mais críticos da plateia: as músicas do novo disco soariam espetaculares ao vivo, e Alissa White-Gluz não só entregaria uma fortíssima presença, como guiaria a noite com o público na mão. A sequência foi um tiro curto ao passado, trazendo “Ravenous” (Wages of Sin, 2001), um dos clássicos da fase com a respeitadíssima predecessora, Angela Gossow.
Com o público hipnotizado pelo banho de riffs, melodias e carisma, a banda mostrou um setlist que sintetiza a fase atual, com Alissa à frente da banda, e também revivendo alguns dos grandes momentos do passado. Regido pelas “duras” palavras de White-Gluz “We are Arch Enemy, and this… is… fucking… WAR”, o set trouxe também uma seleção de faixas do luxuoso álbum War Eternal (2014, o primeiro com Alissa nos vocais), como a furiosa parede sonora de “Stolen Life”, além da faixa-título “War Eternal” – que acendeu os ânimos do público – e dos empolgantes refrões de “You Will Know My Name” e “As the Pages Burn”, cantadas aos berros pelos devotos, para contentamento visivelmente emocionado do guitarrista e fundador Michael Amott.
Do último disco, outras escolhas foram ainda a rápida “The Race”, que explodiu em um moshpit no centro da pista (apenas um aquecimento para o que aconteceria em “Pleasure to Kill”, quando as entidades do thrash alemão assumissem o palco mais tarde); ainda rolaram “First Day in Hell” e as belíssimas dobras de “The Eagle Flies Alone”, um dos destaques do último álbum. A banda encerra o primeiro set com o aguardado clássico da era Gossow “We Will Rise”.
Para o generoso encore, a banda reservou a nova e ambiciosa “Avalanche”, outro ponto alto de Will to Power. Após o antigo duo “Snowbound”, o grand finale veio com “Nemesis” e “Fields of Desolation”, resgatando as grandes e distintas fases da banda, ambas cantadas com entusiasmo por todos os saciados e afetuosos fãs.
Os 4 anos com Alissa à frente passaram voando, e o entrosamento que se formou ali ajuda a superarmos a sóbria porém triste decisão de Angela Gossow, que optou por trabalhar nos bastidores da banda, deixando, como mulher e dona de vocais extremamente agressivos, um legado inigualável para somar à história heavy metal. Se inicialmente, em contrapartida, Alissa White-Gluz se diferenciava bastante de sua predecessora, causando certo contraponto na estética que a banda vinha praticando, hoje este contraste está bastante balanceado, mostrando a banda adaptada à pegada ‘moderna’ da vocalista, e ela cedendo à entrega perfectionista e neoclássica dos suecos.
De poucos sorrisos durante as canções e com uma pegada ‘curta e grossa’ (como dizemos por aqui), a vocalista deixou adereços complexos pela praticidade de um visual mais enxuto, contribuindo para uma experiencia mais dinâmica dentro da limitada espacialidade do palco. Nessas condições, ofereceu uma performance absolutamente brilhante, impondo respeito do primeiro ao último segundo. Se, pelas redes, ficamos convencidos de que Alissa White-Gluz– fora dos palcos – é uma mulher com muito conteúdo, posições ideológicas bem definidas e frequentemente inspiradoras, no palco, essa personalidade forte se traduz em uma cantora com vocais impressionantes e presença de palco de altíssimo porte. A banda deixou se despediu ovacionada, voltando sem os instrumentos para uma selfie com o público e uma despedida à altura de um dos melhores shows que Porto Alegre viu em 2018.
A saída dos suecos deixaria um outro vazio que não mais seria preenchido: o de equipamento. Quando se viu, o palco do Opinião havia se convertido em um amplo salão, apenas com a bateria de Jurgen “Ventor” Reil no centro. Para o pavor dos fotógrafos, os alemães subiriam ao palco com uma luz beirando o perturbador, propondo que apenas as silhuetas dos músicos e seus instrumentos fossem insinuadas na penumbra. Essa foi o tom do show dado pela lenda Mille Petrozza (vocal e guitarra), junto de seu companheiro de longa data Ventor (bateria), além dos hoje clássicos Christian Geisler (baixo) e Sami Yli-Sirnio(guitarra): apenas os músicos, o público e o único elo possível entre eles – a música do Kreator.
Com a imagem banda se perdendo em meio às luzes densas e agressivas, o foco do Kreator foi mesmo no som. O repertório dos alemães transitou amplamente entre os álbums modernos da banda, enfatizando no último lançamento, Gods Of Violence (2017). Nada mal para uma banda que esteve em Porto Alegre para promover outros grandes clássicos “recentes” de sua longa carreira, como Enemy of God (2005) e Hordes of Chaos (2009), o segundo na boa companhia do Exodus.
A banda subiu ao palco ao som da “Mars Mantra”, anunciando o ponto de partida em “Phantom Antichrist”, do álbum homônimo de 2012. Em seguida trouxeram o peso de “Hail to the Hordes”, primeira pedrada da noite a ser retirada último disco. Na sequencia, sob o anúncio “Enemy of God”, resta dizer que a pista do Bar Opinião virou um campo de batalha. Para quem estava fora das rodas, sempre encorajadas por Petrozza, era desafiador se manter no mesmo lugar sem tomar alguns pontapés ou empurrões. Em seguida, rolaram “Satan is Real”, entoada como profecia (e algum humor) pelos presentes, e a poderosa “Civilzation Colapse”, as quais antecipariam um breve e aguardado retorno ao passado.
A primeira faixa da fase “clássica” do Kreator foi a esperada “People of the Lie”, aumentando o número de adeptos no vale do moshpit, que se ampliava na pista música após música. Em seguida, Petrozza surge com uma bandeira, enquanto o público clama pelo nome da banda. “It’s time… to rise… the flag… of… HATE!” foram as derradeiras palavras que deflagraram “Flag Of Hate”, do velho debut Endless Pain (1985), como se estourasse uma guerra por uns 4 minutos. “Phobia” encerrou o combo da era de ouro da banda, que enfim se volta novamente aos tempos modernos.
Em termos de execução, a banda se mantém rápida, direta e sempre fiel aos intrincados arranjos originais e solos pontuais; mas a participação do público nas canções seguintes, “Gods of Violence” e “Hordes of Chaos” – ao entoar os catárticos versos “we shall kill” e “everyone against everyone” – foi decisivo para tornar este o ápice do show. “Está uma noite fantástica. Cada vez que volto ao Brasil, me lembro que esta é nossa casa, é a casa do metal”, diz o vocalista. O vaidoso público apreciou o comentário, mas deu uma trégua com “Fallen Brother”, música que serviu de descanso para os presentes tomarem prumo para o que viria pela frente.
O quarteto deixou o palco por menos de 2 minutos, mas por nem um segundo o público deixou de berrar por seu retorno; logo se ouviu a épica introdução “The Patriarch” trazendo o bis, seguida do clássico hino à revolta social concebido pela banda em 2001: “Violent Revolution” deu lugar ao coro de uma casa lotada de pessoas famintas pelo thrash impiedoso do Kreator. Por fim o vocalista sentenciou o golpe de misericórdia: “Pleasure to Kill”, faixa mais rápida da banda (será?) e trilha da porção mais agressiva da noite, viria para encerrar a noite no melhor estilo “tudo ou nada”.
Mille orquestrou a abertura de um vão na pista. “Abre, abre”, gritava um, tentando ajudar a separar o público em dois grandes grupos – ao primeiro acorde do último petardo da noite, duas hordas de gaúchos enlouquecidos se enfrentaram corpo a corpo e deram os trabalhos por encerrado com uma grande festa da violência. A explosão sonora nos PAs rendeu aos músicos e seus instrumentos num palco vazio uma grandiosa experiência de thrash metal puro, direto e sem frescura.
A banda mantém-se no topo do gênero, e deixa o público na euforia da maior roda que já vi no naquele lugar. Nesse clima de fraternidade e celebração, o Kreator fecha a noite, numa grande catarse de ódio e devoção compartilhada pela legião de presentes.
Peço ao leitor que desculpe pela extensão desta resenha, mas se é fato que grandes noites são merecedoras de fartos relatos, é impossível ser econômico com o grande evento que deixou a vibe ideal para o que viria mais tarde, após o término do evento: uma festa do próprio Opinião, com umas 4 bandas tributo (um Dio cover absurdo!), além de uma apresentação da Sorrowful Dream, trazendo o lado negro do metal gaúcho.
Um fim de ano movimentado para a cena gaúcha de metal, que nesse ritmo apenas tende a receber mais adeptos. No mês que vem haverá ainda a segunda edição do RS Metal, com os nomes gaúchos que ajudaram e ajudam a escrever a história do underground Brasileiro: Panic, Rebaellion e o Hangar de Aquiles Priester, que passa por sua melhor fase desde Inside Your Soul. Longa vida à Liberation, que segue sua agenda com nomes relevantes da música internacional, mantendo-se firme na organização de eventos históricos em território nacional.