Da esquerda para a direita: Danny Kirwan, Jeremy Spencer, Peter Green, Mick Fleetwood e John McVie. Fleetwood mac em 1970
Mais de 50 anos de história. Dois continentes diferentes. 18 músicos diferentes – dentre eles, 11 guitarristas! Coincidentemente, 18 álbuns oficiais de estúdio. Uma mudança completa de estilo musical. Dezenas de milhões de álbuns vendidos. Os números do Fleetwood Mac impressionam quase tanto quanto sua música. E é para ela que esta Discografia Comentada se volta – mas antes, um pouquinho de história não faz mal. E essa história começa em 29 de outubro de 1946, quando Peter Allen Greenbaum nasceu em Londres. Ou começaria em 24 de junho de 1947, data em que Michael John Kells Fleetwood chegou ao mundo, em Redruth, Cornwall? O primeiro foi o responsável por criar o grupo, o segundo, por mantê-lo vivo – e inclusive gerenciá-lo quando a situação ficou mais complicada a ponto de o empresário da banda juntar um grupo de desconhecidos, batizá-lo com o nome da banda e o levar para uma turnê americana. Seguir a trajetória dos dois músicos seria um tanto demorado, portanto, vamos ao momento que interessa.
Peter Green, em 1966, tinha o emprego dos sonhos de qualquer aficionado por blues na Inglaterra: tocava guitarra com John Mayall And The Bluesbreakers. Entre outubro e novembro de 1966, Mayall, Green, o baixista John McVie e o baterista Ainsley Dunbar (pausa para eu me abaixar e pegar o queixo no chão) registravam Hard Road, terceiro álbum da turma. Dunbar permaneceu pouco tempo, saindo em abril de 1967, dois meses após o lançamento do LP. Green lembrou-se de um baterista que conheceu quando ambos tocavam com a banda de apoio de Pete Bardens (futuro tecladista do Camel), The Peter B’s, um magricela de quase dois metros de altura chamado Mick Fleetwood. A banda tinha evoluído para Shotgun Express, com um jovem ex-coveiro chamado Rod Stewart nos vocais, mas o batera nem pensou duas vezes e aceitou o convite para os Bluesbreakers.
A passagem de Fleetwood pela banda seria curta, pois Mayall, cansado de vê-lo bêbado nos shows, demitiu-o. Green saiu pouco depois, e tendo ganhado de presente de Mayall algumas horas de gravação em estúdio, chamou sua seção rítmica favorita (Fleetwood e John McVie) para gravar umas músicas. Todos gostaram do resultado, mas McVie ficou fazendo doce, não querendo abandonar a segurança dos Bluesbreakers. Assim, a nova banda foi formada inicialmente por Green, Fleetwood e Bob Brunning no baixo. Para batizar o grupo, o nome de uma das músicas gravadas naquela sessão foi adotado: Fleetwood Mac. O empresário sugeriu que acrescentassem o nome de Green, e este, incerto sobre sua capacidade de liderar uma banda, sugeriu o acréscimo de outro guitarrista e vocalista, e Jeremy Spencer foi recrutado; Spencer se encarregava do piano e da slide guitar. Por um breve tempo, o grupo foi anunciado com o quilométrico nome de Peter Green’s Fleetwood Mac Featuring Jeremy Spencer, depois abreviado para Peter Green’s Fleetwood Mac. Um contrato com o selo Blue Horizon, de Mike Vernon, foi negociado, e, depois de mais algumas sessões, saiu O DISCO.
Fleetwood Mac [1968]
Gravado ao longo de sessões em outubro e novembro de 1967, e lançado em fevereiro do ano seguinte, o primeiro álbum trazia Fleetwood Mac pichado numa parede e, na contracapa, o nome Peter Green’s Fleetwood Mac. O LP é, na modesta opinião deste que vos escreve, o melhor álbum de blues gravado na Inglaterra em todos os tempos. A formação com Peter Green (guitarra, harmônica e vocais), Jeremy Spencer (slide guitar, piano e vocais), John McVie (baixo) e Mick Fleetwood (bateria) só gravaria este LP e o segundo, bem como alguns singles, mas deixou sua marca. Trazendo oito canções originais de Green e Spencer e algumas regravações, Fleetwood Mac é uma aula de blues elétrico como poucas vezes se viu fora do delta ou de Chicago. Os destaques são muitos, incluindo “Long Grey Mare”, “I Loved Another Woman”, “The World Keeps on Turning”, todas de Green, a bela versão de “Hellhound on my Trail”, com Spencer ao piano, que brilha na slide guitar em várias músicas, como “Shake Your Moneymaker”. O álbum atingiu o 4º lugar na parada britânica. Ao vivo, o Mac mesclava clássicos do blues interpretados por Green ou Spencer com composições originais e paródias de rocks dos anos 50 feitas por Spencer, que Fleetwood descreveu em sua autobiografia como duas pessoas distintas: tímido, quieto e gentil fora do palco, e um verdadeiro vulcão na frente de uma plateia. Uma gravação dessa época, “London ‘68”, foi disponibilizada em CD nos anos 90, com baixa qualidade sonora, mas uma performance sensacional, mostrando todo o potencial do grupo no palco. Uma nota de rodapé: Bob Brunning participou de “Long Grey Mare”, que por décadas foi a única gravação dele com o FM lançada. Brunning tocou um tempo com o Savoy Brown e depois tornou-se professor e escritor, inclusive publicando livros sobre a banda e, no final dos anos 90, lançou uma gravação ao vivo no Marquee (quase inaudível) em que ele participou. Ele viria a falecer em 2011 de um ataque cardíaco.
Mr. Wonderful [1968]
O segundo LP foi lançado meros seis meses depois do primeiro, em agosto de 1968. Apresenta um Fleetwood seminu na capa, com os olhos arregalados, e traz uma seção de metais e uma tecladista convidada, Christine Perfect, à época integrante do Chicken Shack (outra banda essencial para o blues inglês), que se encarregou do piano nas músicas de Peter Green. Este álbum não teve o mesmo apoio da crítica que o primeiro, e de fato parece uma versão piorada do maravilhoso disco de estreia. Gravado ao vivo no estúdio, o álbum seguiu a disposição dos instrumentos no palco e usava inclusive o PA dos shows. Ainda assim, tem coisas muito boas a destacar: as versões da banda para “Dust my Broom” e “Need Your Love So Bad” estão entre as melhores que o Mac gravou nessa fase. E o material original, mais uma vez, é dividido entre composições de Green e de Spencer, que não consegue se livrar da sombra de “Dust my Broom”, tornando o disco um pouco repetitivo – o fraseado de slide guitar de Elmore James é repetido várias vezes. Mr. Wonderful não foi lançado nos EUA na época, embora tenha atingido o décimo lugar na parada britânica. Seis das músicas foram lançadas nos EUA, junto com os singles “Albatross”, “Black Magic Woman” e “Jigsaw Puzzle Blues”, mais duas composições gravadas para Then Play On e uma inédita (“Something Inside Me”) como o álbum English Rose, cuja capa trazia Fleetwood de peruca e maquiagem, mais uma vez com os olhos arregalados.
Na Inglaterra, The Pious Bird of Good Omen, lançado em agosto de 1969, repetiria alguns dos singles e traria duas músicas extraídas de um disco do pianista de blues Eddie Boyd, lançado pelo Blue Horizon e trazendo o Mac como acompanhamento. Essas coletâneas são importantes porque algumas das músicas mais conhecidas do Mac nessa época foram disponibilizadas somente em compactos, como as já citadas “Albatross”, “Black Magic Woman”, e “Oh Well” e “The Green Manalishi (With the Two-Pronged Crown)”.
Then Play On [1969]
O terceiro álbum oficial do Mac saiu em setembro de 1969, e traz um terceiro guitarrista e vocalista, o jovem Danny Kirwan, cuja estreia discográfica com o grupo dera-se em três músicas de English Rose. Peter Green convidou um novo guitarrista por uma razão bem simples: se ao vivo ele fazia a base para Jeremy Spencer brilhar em suas músicas, este saía do palco quando chegava a vez das de Green. Assim, Kirwan preencheria um buraco deixado no som da banda. A parceria entre Green e Kirwan deu certo, e o resultado foi que, apesar de ser creditado e aparecer na capa interna, Spencer praticamente não toca no disco (ele toca piano na extensa coda instrumental de “Oh Well”, que não faz parte do LP britânico original). Lançado pela Reprise Records, o terceiro álbum mostra uma banda que evoluía para longe do blues, e trazia Mick Fleetwood experimentando com diferentes instrumentos de percussão. “Then Play On” é um álbum que mescla momentos suaves e quase folk com verdadeiras pauladas, e traz duas composições (“Searching for Madge” e “Fighting for Madge”) creditadas a John McVie e a Mick Fleetwood – retiradas de uma jam mais longa, as músicas na verdade deveriam ser creditadas aos quatro músicos (Spencer não participou), mas Peter Green queria que o baixista e o baterista tivessem pelo menos um crédito cada um nas composições. Then Play On é um álbum uniformemente bom, mas diferente tanto dos antecessores quanto dos sucessores; destaque absoluto vai para a safada “Rattlesnake Shake”, de Peter, e para o dueto Green-Kirwan em “Like Crying”. As instrumentais são ótimas e, com mais de 50 minutos de duração, o LP britânico original oferecia bastante para o comprador; a edição americana original não trazia “Without You” nem “One Sunny Day”, que já tinham sido lançadas em English Rose, e acabou se tornando rara, porque em novembro de 1969 o disco foi relançado com a inclusão do single “Oh Well”, tirando “When You Say” e “My Dream” para abrir espaço, e as duas partes de “Madge” colocadas lado a lado. O álbum atingiu o 4º lugar na parada britânica e o 109º na americana.
Um detalhe interessante: como compensação para a pouquíssima participação de Jeremy Spencer, a banda planejou um EP com rocks no estilo da década de 50, a ser creditado a Earl Vince & The Valiants, mas apenas “Somebody’s Gonna Get Their Head Kicked In Tonite”, lançada como lado B do single “Man of the World”, veria a luz do dia. A gravação apresenta Spencer imitando Elvis no vocal, com o acompanhamento de Peter, John e Mick. O projeto não foi adiante, mas Fleetwood, McVie e Kirwan acompanharam Spencer na gravação de seu primeiro álbum solo, totalmente composto por música da década de 50 e paródias escritas por Spencer; Peter Green participou numa música e o saxofonista Steve Gregory aparece em diversas. Jeremy Spencer foi lançado em janeiro de 1970, mas não alcançou sucesso comercial.
O grupo em 1970
Após sair do Fleetwood Mac, Peter Green gravou o álbum The End of the Game e praticamente sumiu do mapa (embora ele vá reaparecer nesta Discografia). Só no final da década de 70 ele esboçaria um retorno, lançando alguns discos solo, para sumir novamente nos anos 80. Posteriormente, na década de 90, Green reapareceu com seu velho amigo com o Splinter Group (que incluiu Cozy Powell na formação original). O mestre nos deixou em julho de 2020, aos 63 anos.
Blues Jam in Chicago – Fleetwood Mac In Chicago – Blues Jam at Chess vols. 1 & 2 [1969]
Este álbum duplo, que foi lançado ao longo dos anos com diferentes nomes, traz os mestres e os alunos. O quinteto (Green, Spencer, Kirwan, McVie e Fleetwood) acompanha – e é acompanhado – por Willie Dixon, Otis Spann, Shakey Horton, J. T. Brown, Honeyboy Edwards, S. P. Leary, e o então misterioso Guitar Buddy, mais conhecido como Buddy Guy. Lançado pelo selo Blue Horizon após a banda tê-lo deixado, o disco é oficial, mas seu caráter de jam session gravada ao vivo em estúdio (numa única sessão em 4 de janeiro de 1969) o torna uma exceção no catálogo do grupo. As formações variam ao longo das músicas, e em nenhum momento temos todos os envolvidos juntos. Algumas composições são originais, há várias covers, e o disco como um todo pode ser descrito como uma grande diversão entre músicos que amam o blues e acabam por estabelecer uma conexão entre si justamente por causa disso. O lançamento original trouxe 22 músicas, expandido para 33 na box set The Complete Blue Horizon Sessions 1967-69. Peter Green brilha no lado A do primeiro volume, com Jeremy Spencer mandando ver nas composições de Elmore James no lado B. Kirwan tem seu momento no primeiro lado do segundo volume, cujo lado B é mais democrático, encerrando com Green novamente mandando ver. Difícil destacar alguma composição; o Fleetwood Mac original está aqui em seu habitat natural e os músicos americanos mostram-se simpáticos aos ingleses brancos, contribuindo com instrumentação e vocais bem colocados. Ainda assim, gostaria de recomendar “Last Night” entre as músicas lideradas por Peter Green, “Madison Blues”, dentre as de Spencer, e “World’s in a Tangle”, de Kirwan. “Someday Soon Baby”, com Otis Spann no vocal principal, é outra música que merece ser lembrada. Se você é fã do Mac original, vai adorar o álbum; mas se você acha que o grupo realmente só começou quando incorporou Lindsey e Stevie, nem perca seu tempo. O álbum duplo original atingiu o 118º lugar na parada da Billboard.
Kiln House [1970]
Peter Green, agora consumindo LSD em grande quantidade e desiludido e cansado da vida de rock star, deixou a banda em março de 1970, após se juntar a uma comuna hippie em Munique. Mick Fleetwood convenceu os demais a continuarem, e o quarto álbum de estúdio traz uma formação que não se repetiu, com Kirwan, Spencer, McVie e Fleetwood, e a agora Christine McVie como convidada especial nos teclados – e na arte da capa. Na época, a banda estava vivendo comunitariamente numa casa de campo batizada Benifold, e o título do álbum reflete isso. Mick Fleetwood casou-se com Jenny Boyd – e se tornou cunhado de George Harrison, já que a moça é irmã de Pattie (a futura sra. Clapton). O primeiro álbum sem Green é um dos mais fracos da discografia do Mac, e mostra que nem Danny Kirwan nem Jeremy Spencer estavam preparados para liderar a banda; Spencer consome boa parte do disco homenageando seus heróis dos anos 50, como em “Buddy’s Song” e o híbrido blues/rock cinquentista de “This is the Rock”, e dá um show em “Hi Ho Silver”, de Big Joe Turner (que o Foghat regravou como “Honey Hush”). Kirwan se sai um pouco melhor em “Jewel Eyed Judy” e “Station Man”, e brilha na instrumental “Earl Gray”. Mas o disco como um todo não decola – apesar de ter alcançado a melhor posição na parada americana até então (69º posto) e ter sido o último disco do grupo a figurar na britânica até o homônimo de 1975. Entretanto, um detalhe técnico deve ser mencionado: a engenharia de som foi feita por um jovem chamado Martin Birch (sim, esse mesmo), e a qualidade de gravação é muito boa.
Durante a turnê americana para promover o disco, em fevereiro de 1971, Jeremy Spencer simplesmente desapareceu. Ele foi reencontrado alguns dias depois no templo da Children of God, e declarou que, de livre e espontânea vontade, ele deixava o Fleetwood Mac e se juntava à seita. Desesperado, Fleetwood convenceu Peter Green a se juntar ao grupo para concluir a turnê, e este, apesar de todos os problemas que o afligiam, tocou como nunca. Mas não permaneceu – seu comportamento errático fora do palco e suas ideias estranhas (ele queria que a banda percorresse o mundo em turnê como uma caravana de ciganos, sem cobrar pelos shows), aliado ao próprio desinteresse com o meio musical fizeram Green sair novamente. Quanto a Spencer, deixou o mundo da música por alguns anos, retornando posteriormente, tendo lançado vários discos-solo e mantendo um perfil discreto.
The Original Fleetwood Mac [1971]
Gravado ao longo das primeiras sessões da banda, The Original Fleetwood Mac foi lançado em maio de 71 pelo selo Blue Horizon, quando a banda já tinha se distanciado do blues. Bob Brunning aparece em “Rambling Pony 2”, Jeremy Spencer em quase todas, e o trio Green, McVie e Fleetwood no resto. O relançamento na box da Blue Horizon traz algumas com Danny Kirwan, que não constam do LP original, mas são interessantes no sentido de posicionar a produção do terceiro guitarrista no material completo da banda. O disco não figurou em nenhuma parada, e é mencionado como uma verdadeira curiosidade na discografia do grupo. Ainda assim, The Original Fleetwood Mac tem seu charme e mostra, mais uma vez, que a banda era muito afiada no blues. A instrumental que batizou o grupo é pouco mais do que uma jam de estúdio, mas traz boas guitarras de Peter. Jeremy Spencer brilha em “Allow Me One More Show” e em “Mean Old Fireman”, e nas músicas adicionais gravadas com Danny Kirwan tem-se versões iniciais de composições que apareceram em “Then Play On”, bem como de “Something Inside Me”, que foi usada em English Rose e não fora lançada em LP na Inglaterra. Mais uma vez, trata-se de um álbum para os fãs da fase inicial do grupo, e é válido por trazer material que, na quase totalidade, era inédito à época. Mick Fleetwood nem mesmo menciona o LP na sua autobiografia – mas quem gosta de blues deve dar uma conferida.
O Fleetwood Mac em 1971 era novamente uma banda em busca de um recomeço. Os anos seguintes mostrariam uma banda que se afastava completamente do blues e desapareceria por um tempo das paradas britânicas – até que, repentinamente, explodiria nos EUA, após um período de modesto sucesso nesse país. A segunda fase – e o começo da terceira – será objeto da segunda parte da Discografia Comentada.