É bom ouvir uma banda como ela realmente soa em vez de ouvirmos a versão Disney World dessa mesma banda.»
«Muito obrigado pelo tempo que nos estão a dispensar, estamos muito agradecidos por isso», começa por dizer de forma muito honesta e humilde John McEntee, líder dos Incantation. Claro que lhes dispensamos tempo. Afinal, são os Incantation!
Nem só de death metal técnico ou futurista reza a história. Na verdade, em 1992, meados do apogeu do estilo, viveu-se um dos seus momentos mais prolíficos. Entre LP, EP, compilações e demos, muitas bandas norte-americanas, e não só, fizeram história nesse ano: Nocturnus, Obituary, Mortification, Morgoth, Therion, Hypocrisy, Amorphis, Massacra, Sadus, Bolt Thrower, Baphomet, Afflicted e Vader são apenas alguns dos gigantes que lançaram discos fundamentais para a evolução do género. O estilo começava a limar arestas e a maturar – ouvindo “Thresholds” ou “A Vision of Misery” sentimos que ambos os registos poderiam ter sido gravados ontem, tal continua a ser a sua indiferença ao inevitável passar do tempo. Como em qualquer estilo, porém, houve quem percebesse que o death metal estava a transitar directamente da infância para a idade adulta, ignorando por completo a adolescência, uma idade vital para a formação pessoal e para adquirir competências sociais básicas. Assim, e em vez de saltar completamente essa fase, houve quem chegasse a ela e decidisse vivê-la como deveria ser vivida. De forma rápida, inconsequente e 100% descomprometida, portanto.
Quase 30 anos passados sobre a era de platina do death metal, poucos registos serão tão importantes na actualidade como “Onward to Golgotha”, dos Incantation, consensualmente considerada uma das obras maiores do subgénero e que honra a sua essência mais pura: é agressivo, primitivo e cavernoso. Sem este disco, não existiriam bandas como Portal ou Dead Congregation, entre imensas outras. Trata-se de um trabalho DESTA importância. No entanto, John McEntee, eterno fundador dos Incantation, sabe que o caminho é em frente e 2020 dá as boas-vindas a “Sect of Vile Divinities”, o 12º registo do quarteto que vê a banda fazer um corta e cola de diversos períodos da sua carreira, desta feita apostando numa produção mais moderna, mas sem ignorar o som cavernoso clássico de 1992. Nada que tivesse sido planeado, como nos afirma o vocalista.
«Não pensámos muito nisso, na verdade. Queríamos que este disco fosse muito mais atmosférico, algo parecido com o que fizemos em “Diabolical Conquest” ou “Mortal Throne of Nazarene”, com muitas partes harmónicas e uma sensação estranha, medonha, agonizante. Algumas das músicas do novo disco são mais directas e complexas. Como compositor, quis revisitar ritmos simples e eficazes, como o que fizemos em músicas como “Profanation”, “Iconoclasm of Catholicism” ou ainda “Blasphemy”. Quis concentrar-me mais nesse tipo de riffs poderosos e relativamente orelhudos, mas sem perder a agressão e peso; portanto, sim, concordo que há um pouco de tudo neste novo disco. Em termos de produção, é sempre uma situação estranha, pois queremos sempre um som poderoso e brutal, mas, claro, também queremos a melhor produção final possível. Por vezes, dou sugestões de como o disco poderia ficar melhor em relação à produção e acabo por encontrar alguma resistência, porque não fica. [risos] Pessoalmente, gosto de um som mais cru e natural, gosto mais do som das demos do que das grandes produções. Este disco acaba por ser o trabalho mais refinado que fizemos até hoje. Estou feliz com o resultado – ouço-o e soa-me mesmo muito bem. Poderia ter ficado com um som um pouco mais cru, mas, de certa forma, acaba por ser cru de uma maneira muito própria. É difícil compará-lo com algo que fizemos há 30 anos, pois não éramos músicos tão bons nessa altura e incidíamos numa faceta mais rude e grosseira. No entanto, penso que isso não lhe retira agressão. Entendo o que querem dizer – afinal, o novo disco não tem uma produção idêntica a “Mortal Throne of Nazarene”, é claramente mais refinado, mas esse disco foi uma anomalia que resultou nisso devido aos problemas com os membros da banda nessa altura.»
Mas não é por isso que “Sect of Vile Divinities” se parece com um disco de death metal actual. Na verdade, e exceptuando alguns triggers obrigatórios na bateria, todo o som do novo trabalho é natural e amplo, algo que os puristas tanto prezam por ser parte fundamental do estilo. Naturalmente, quisemos saber como decorreram as sessões de gravação do novo registo. «Não tinha ideia que os triggers de bateria soavam tão óbvios, é bom terem referido isso. À excepção de “Onward to Golgotha” e “Mortal Throne of Nazarene”, que são 100% analógicos em todos os sentidos, todos os nossos discos têm triggers de bateria, embora nos esforcemos para que pareçam o mais naturais possível. Como sabes, os triggers existem apenas para dar consistência ao som, e nós gravamos o som natural em duas pistas e os triggers noutras duas. Depois, misturamos ambas, pois achamos que pormenores como o som do bombo devem ser a coluna dorsal em que todo o trabalho se apoia. Assim, enviámos as músicas analógicas e digitais ao Dan Swanö [produtor de “Sect of Vile Divinities”] para que ele pudesse ter o máximo de opções possíveis, visto que não estivemos juntos em estúdio. Assim, ele poderia utilizar ambas como melhor entendesse, deixámos isso à sua vontade, pois ele é o mestre da produção. Se fosse eu a produzi-lo, teria ficado terrível, uma porcaria. [risos] Gosto de trabalhar com o Dan porque é da nossa geração, entende o underground e entende-nos, sabe que quereríamos um som orgânico, sem uma grande produção, que é o tipo de produções que bandas como The Black Dahlia Murder usam. Ele sabe isso. Necessitamos de uma certa quantidade de atitude old-school. É um gajo muito fixe, o que também ajuda.»
Ou seja, nem sempre o que soa melhor é, de facto, melhor. «Não há dúvidas de que o death metal sofreu imenso na atitude devido à produção e aos truques em estúdio, da utilização do ProTools – isso estragou tudo. Venho de um tempo em que tínhamos de tocar tudo em estúdio, tínhamos de dar o nosso melhor no álbum. Hoje, com o ProTools, clicas no botão do rato e uma parte de guitarra fica bonita. As bandas não se sentem obrigadas a ensaiar tanto, perde-se a alma do estilo. Quando é tudo muito bonito e digital, perde-se o feeling da música. Para mim, as melhores bandas são as que me fazem sentir que estão a dar o seu melhor. Não me interessa que a banda seja milimetricamente perfeita, mas que me faça sentir algo quando a ouço. Venho dessa onda mais rock n’ roll, menos estéril. Por isso é que não gosto da música actual, que está repleta de computadores, baterias digitais, efeitos EBM ou lá o que for. Para mim, é música sem alma, é sempre [imita uma batida de música electrónica] tum, tum, tum a toda a hora. Fico feliz quando percebo que existem bandas actuais a tentarem imitar o som do death metal inicial, antes de existirem computadores que faziam tudo. É bom ouvir uma banda como ela realmente soa em vez de ouvirmos a versão Disney World dessa mesma banda. Como músico que sou, acho negativo teres tanto auxílio digital, porque se torna difícil dares o teu melhor enquanto músico. É tentador poderes aperfeiçoar tudo com essas ferramentas, mas, por vezes, deves deixar as coisas serem o que são. Se por vezes não consegues tocar uma parte a 100%, deves deixá-la como está, pois assim soará sempre a algo legítimo, realista. Nos anos 90 tinhas bandas muito coesas e técnicas, como Atheist, Suffocation, Crytopsy e Atrocity, mas soavam e soam muito melhor do que as bandas técnicas actuais. Quando vês as novas bandas ao vivo e vês que não conseguem ser o que são em disco, percebes que algo está mal. Foi o que aconteceu com o ProTools nos anos 90. Ouvias as possibilidades que a ferramenta te oferecia e ficavas maravilhado. No entanto, quando ouvias muitos bateristas ao vivo, dizias: ‘Uau, este gajo é péssimo, como é possível?’ Era possível, claro, porque o ProTools não funciona ao vivo e a cores.»
Por fim, sabemos que os Incantation vão andar na estrada com os Belphegor e os Necrosy já neste Outono pela Europa, o que deve ser bastante satisfatório para uma banda que acabou de lançar um disco novo. «Espero que as coisas estejam melhores no Outono. Seria errado dizer que não estou preocupado com a situação. Soube que os Atheist cancelaram uma digressão em Setembro ou Outubro por causa de vôos cancelados dos Estados Unidos para a Europa, espero que isso mude. Mas estou muito optimista e ansioso e feliz em promover o novo disco ao vivo. Já fizemos muitas digressões com os Belphegor, conhecêmo-los bem e sabemos que correrá tudo bem, principalmente porque os fãs vão querer sair de casa depois desta pandemia para verem um bom concerto de death metal. Espero que as coisas melhorem, embora só mais próximos da data saberemos. Neste momento, não conseguimos programar nada, temos de esperar para ver.»