domingo, 10 de setembro de 2023
Yes e Jethro Tull: Os Dinossauros Estão De Volta?
Yes e Jethro Tull: Os Dinossauros Estão De Volta?
Por Melina born
Este artigo especial focaliza em duas das maiores bandas do rock dos anos 70, que passaram pela sua dose de problemas no século XXI e ressurgiram recentemente: Jethro Tull e Yes. A primeira banda passou mais de vinte anos sem lançar nenhum álbum original, a segunda perdeu o último membro fundador da sua formação em 2015, com a morte de Chris Squire. Ambas lançaram dois álbuns de inéditas com pouco tempo entre eles, fazendo a gente pensar que as bandas estão efetivamente de volta (e não somente fazendo shows), e, como quando a esmola é muita o santo desconfia, vai-se aqui analisar essa produção recente.
JETHRO TULL: Existe vida sem Martin Barre?
O caso do Jethro Tull é curioso. A banda pertence a Ian Anderson, ninguém jamais questionou, mas entre 1969 e 2011 contou com o excelente guitarrista Martin Barre. Anderson, de acordo com Barre, quis encerrar o Jethro Tull, e lançou os seus álbuns seguintes com seu próprio nome: Thick as a Brick 2 e Homo Erraticus. Mas em 2017 o flautista anunciou uma turnê de 50º aniversário para o Jethro Tull, e como integrantes da banda, os membros de sua banda solo: Florian Opahle na guitarra, John O’Hara nos teclados, David Goodier no baixo e Scott Hammond na bateria. Também anunciou um novo álbum de material inédito. A turnê veio e terminou, e o novo disco não saiu.
Em 28 de janeiro de 2022, The Zealot Gene saiu com Anderson sozinho na capa e o nome Jethro Tull. Gravado ao longo de um período de quatro anos, o álbum registra uma banda que já não existia quando do lançamento, pois Florian Opahle tinha anunciado que iria sair para se dedicar à produção e ao trabalho em estúdio em 2020. Seu substituto, Joe Parrish-James, participa em uma música, “In Brief Visitation”, e outras quatro músicas do disco, que Ian Anderson decidiu lançar como estavam por causa da dificuldade de reunir os músicos por causa da pandemia, são gravações solo do vocalista.
Detalhes para lá, o que se tem em The Zealot Gene é um bom disco do Jethro Tull, aberto pela excelente “Mrs. Tibbets”, dedicada à sra. Enola Gay, mãe do coronel Paul Tibbets, que comandou o bombardeiro – batizado “Enola Gay – que lançou a primeira bomba atômica em Hiroshima. Arrisco dizer que é a melhor música da banda desde os anos 80, com um ritmo contagiante, uma bela melodia, bom arranjo e uma letra excelente, mas infelizmente nenhuma das posteriores é tão marcante; há boas músicas no disco, algumas mais rock, como “Shoshana Sleeping” e a faixa-título, outras mais elaboradas, como “Mine is the Mountain”, e várias com influência mais folk, como “Sad City Sisters” (com belo trabalho de O’Hara no acordeão), mas nenhuma se compara à abertura. Mas a guitarra de Opahle não é tão forte quanto a do velho Martin Barre, e em “Barren Beth, Wild Desert John” e “The Betrayal of Joshua Kynde”, este fez muita falta. “Three Loves, Three” faz menção ao livro “Os Quatro Amores”, de C. S. Lewis, e é provavelmente a melhor das músicas solo de Ian Anderson no disco, com uma bela melodia e um arranjo mais elaborado. “Fisherman of Ephesus” traz algumas memórias do Jethro Tull dos anos 70, mas, mais uma vez, Barre faz muita falta.
Um aspecto interessante é o número de referências religiosas na maioria das músicas. No belo livreto da edição Deluxe, Anderson chega a incluir uma lista de versículos da Bíblia que o inspiraram para compor as músicas; além disso, há várias fotos de igrejas e objetos religiosos. Essa edição é acompanhada por um segundo CD com as demos para as doze músicas do álbum final, mais “She Smells Sweet”, que não chegou a ser completada. Um DVD ou Blu-Ray completa a edição, trazendo a mixagem em Surround de The Zealot Gene, mas não as demos. Uma experiência que pessoalmente fiz e achei interessante: ouvi “Aqualung” e este disco com as letras nas mãos, e é interessante ver a mudança de posição de Ian Anderson sobre a religião, pois, se em “Aqualung” o ódio à religião é nítido, aqui se está diante de uma declaração de respeito. O livreto traz, inclusive, os acordes de cada música.
Em novembro de 2022, anunciou-se que um novo álbum do Jethro Tull, RökFlöte, seria lançado em breve (e de fato o disco saiu em abril deste ano). Baseado na mitologia nórdica, e inspirada pelo fato de que Anderson mapeou seu DNA para descobrir que tinha ancestrais vikings, RökFlöte traz a formação atual do grupo (Anderson, O’Hara, Goodier, Hammond e Parrish- James) e conseguiu uma boa colocação na parada britânica, atingindo o 4º lugar (The Zealot Gene foi 9º na Inglaterra). A atriz e cantora islandesa Unnur Birna participa do disco em duas faixas, declamando textos sobre a base musical da banda, incluindo a abertura, “Voluspo”, e o encerramento com “Ithavoll”. Pode-se destacar diversas músicas no álbum. “Ginungagap” traz generosas e bem-vindas doses de peso à música do Tull, ressuscitando a dinâmica de guitarras distorcidas e bateria pesada com a suavidade da flauta. O clima épico de “Hammer on Hammer” cativa, mas a música se beneficiaria de um acompanhamento mais forte – os músicos atuais são bons, mas fico imaginando essa música com Barre, Clive Bunker e Dave Pegg, por exemplo. “Wolf Unchained”, bem trabalhada e variada, é outra que chama a atenção, destacando o bom trabalho de guitarras. O acordeão de John O’Hara dá as caras em “Trickster (And the Mistletoe)”, que em alguns momentos me lembrou do clássico “The Whistler”. A bela “Cornucopia” é provavelmente a minha favorita, com sua melodia que remete aos grandes momentos do Jethro Tull no passado. “Ithavoll” fecha o ciclo trazendo de volta Unnar Birna e sua voz expressiva.
Particularmente, acho RökFlöte um álbum menos interessante do que The Zealot Gene, mas não é, de modo algum, um disco ruim. Pelo contrário, o fato de ser um álbum conceitual, em que as letras foram escritas seguindo um mesmo padrão, cada uma com três estrofes narrando a lenda ou mito que a inspirou e mais duas trazendo essa história para os tempos atuais, indica que Anderson não se aquietou e ainda tem lenha para queimar. Independentemente disso, é um esforço mais coletivo do que o disco anterior, e Joe Parrish-James se mostra um guitarrista bem mais presente do que seu antecessor Florian Opahle. A edição Deluxe traz as demos das músicas no CD 2, e o Blu-Ray, a mixagem em Surround, bem como uma versão alternativa para “Voluspo” e uma entrevista com Ian Anderson. No todo, os dois discos recentes do Jethro Tull mostram que a banda ainda consegue brindar seus fãs com boa música. Está à altura do passado? Não, ninguém deve esperar esses álbuns no Top 10 da banda, mas, convenhamos, nenhuma banda com 50 anos de carreira lançará seu melhor disco nesses tempos que vivemos…
YES OR NO? STEVE HOWE SE RECUSA A DEIXAR A BANDA MORRER
Em 2001, o Yes lançou Magnification, último álbum com Jon Anderson. Quando este, por problemas de saúde, não pôde participar de uma turnê da banda, Chris Squire, Steve Howe e Alan White simplesmente decidiram seguir em frente, contratando Benoit David para o vocal e Oliver Wakeman para os teclados. No álbum que lançaram em 2011, a banda retrabalhou um épico dos tempos de Drama que ficara inédito, Fly from Here, o que trouxe Geoff Downes de volta para o grupo, e resultou em um bom disco. Três anos depois, saiu o questionável Heaven & Earth, com Jon Davidson nos vocais acompanhando Squire, Howe, White e Downes. Essa formação também rendeu dois álbuns ao vivo, ambos intitulados Like it is, que revisitam álbuns clássicos do grupo.
Com a morte de Chris Squire no ano seguinte, parecia o fim da banda. Steve Howe, entretanto, tinha outros planos. De acordo com ele, Squire queria que o grupo continuasse, e sugeriu seu velho amigo e parceiro de composições Billy Sherwood (que participara do Yes nos anos 90, gravando Open Your Eyes e The Ladder) para o baixo. E, verdade seja dita, Sherwood não apenas desenvolveu um estilo que emula bem o mestre, como ainda por cima canta de maneira muito semelhante a Squire. O Yes continuou se apresentando ao vivo, lançando três álbuns ao (Topographic Drama, 50 Live e The Royal Affair Tour, provando que o grupo executava bem as composições antigas e honrava o passado) e em outubro de 2021 saiu The Quest, com uma formação composta por Howe, White, Downes, Davidson, Sherwood e Jay Schellen, que acompanhava a banda ao vivo devido aos problemas de saúde do veterano Alan White. Esse primeiro fruto do Yes liderado por Steve Howe (que o produziu) é muito superior ao disco anterior (o que não era difícil, convenhamos), e começa com a boa “The Ice Bridge”, parceria entre Jon Davidson e Geoff Downes, com créditos também para Francis Monkman, do Curved Air – Downes aproveitou uma velha demo que tinha tanto ideias suas quanto uma gravação de Monkman.
O sintetizador da abertura remete um pouco a “Touch and Go”, do Emerson, Lake & Powell, mas não se trata de plágio e nem compromete a música, que é favorecida pelas belas guitarras de Howe. A música seguinte, “Dare to Know”, é um AOR relaxado e tranquilo, que traz acompanhamento da orquestra do FAME Studios, localizado na Macedônia do Norte, e destaca o dueto entre Howe e Davidson. A música é boa mas fica muito aquém do que se espera do Yes – até porque eles já fizeram coisa muito superior nessa área. “Minus the Man”, que vem a seguir, não melhora muito e mantém o álbum numa vibe suave, desta vez com Billy Sherwood acompanhando Jon no vocal. “Leave Well Alone” é aberta por Howe, e seguida por um riff razoavelmente pesado para os padrões do Yes; com mais de 8 minutos de duração, a música é bem variada e faz a gente lembrar das glórias do passado. O que lhe falta é uma presença mais incisiva dos teclados (aliás, o desempenho de Downes está abaixo de sua capacidade), mas no todo é uma das melhores do álbum.
“The Western Edge” é outro destaque, com belo trabalho de vocais e as guitarras etéreas de Howe se destacando sobre a base orquestrada – mas mais uma vez sente-se falta de teclados mais proeminentes (o sintetizador de Downes ficou muito baixo na mixagem). Já a baladinha de Jon Davidson, “Future Memories”, é prejudicada pelo excesso de açúcar no arranjo, ainda que apresente mais um bom desempenho de Steve Howe. Felizmente, o álbum volta a ganhar força com “Music to my Ears” – outra balada, mas bem mais interessante, com Downes no piano e um dueto bonito entre Davidson e Howe; durante o refrão, a música tem um andamento semelhante às do Yes dos anos 80, com Trevor Rabin, mas o arranjo remete à década anterior. “A Living Island” encerra o disco normal, mas não se destaca, com melodia pouco atraente e sem grande variação no arranjo. O álbum foi lançado com um CD bônus de três músicas, a razoável “Sister Sleeping Soul”, a fraca “Mystery Tour”, cuja letra alude aos Beatles (e é a única coisa interessante da música) e “Damaged World”, que é a melhor das três, e poderia ter substituído “Future Memories” no disco principal.
Infelizmente, em maio de 2022 Alan White veio a falecer. Mais uma vez, Steve Howe se recusou a pôr fim no Yes, e a banda efetivou Jay Schellen na bateria. E outra vez com produção do guitarrista, saiu em maio de 2023 Mirror to the Sky. O 23º álbum de estúdio creditado ao Yes mostrou-se mais ambicioso do que os anteriores, com músicas mais longas (a faixa-título dura quase 14 minutos), e mais uma vez tem-se a participação da FAME Studios Orchestra. O álbum começa com a boa “Cut from the Stars”, parceria entre Jon Davidson e Billy Sherwood; a bela linha de baixo deste é digna de quem ocupa o posto de Chris Squire. Os nove minutos de “All Connected” são introduzidos pela steel guitar de Howe (um dos craques desse instrumento no rock), e a música tem suficiente variação para sustentar essa duração, com os vocais de Sherwood soando muito parecidos com os de Chris Squire. É um dos destaques não apenas do álbum, mas de toda a discografia do Yes sem Jon Anderson.
“Luminosity”, na sequência, tem uma introdução um tanto pomposa, diferente do resto da música, mas o que vem a seguir não decepciona e novamente tem-se uma composição de mais de nove minutos que consegue prender a atenção do ouvinte. Aqui há um pouco mais de presença dos teclados de Downes, que na maior parte do disco está muito discreto – e ele faz falta. Mas o final da música, com Howe solando acompanhado da orquestra, é marcante. Howe, aliás, é o astro de “Living Out their Dream”, com múltiplas guitarras e um ótimo solo – mas cujo final é um tanto abrupto, como se a banda não soubesse como encerrar a música. E a seguir, a faixa-título, música mais ambiciosa do disco, com longa introdução instrumental, seguida por um trecho acústico e orquestrado, com Howe, Davidson e Sherwood harmonizando nos vocais. A música é bem trabalhada, com um interlúdio instrumental que destaca a orquestra, e Howe mais uma vez é destaque absoluto, com um excelente trabalho de guitarras. Entretanto, mais uma vez sente-se a falta de maior destaque para os teclados, com Downes soando muito tímido. O trecho orquestral perto do final é muito bonito, tornando Mirror to the Sky uma das melhores músicas do Yes no século XXI. “Circles of Time” encerra bem o álbum, uma bela balada com bom desempenho de Davidson.
Como em The Quest, há um CD bônus de três músicas, todas de autoria de Steve Howe. “Unknown Place” poderia ter feito parte do álbum principal sem problemas, com mais de oito minutos de duração e belo trabalho de vocais, numa música em que Jay Schellen se mostra um substituto à altura de Alan White. Downes aparece um pouco mais no órgão, e Howe dá seu show no violão. “One Second is Enough” e “Magic Potion” completam o segundo CD; a primeira também traz Downes com um pouco mais de destaque, e embora não comprometa, não chega a se destacar. Já “Magic Potion” é mais animada, outra vez colocando o destaque nas ótimas guitarras de Steve Howe. No todo, o álbum se mostra um pouco superior ao seu anterior, em especial por conta de “Mirror to the Sky”, uma música que faz o fã se lembrar dos motivos pelos quais aprendeu a gostar do Yes. Como atestam os vários álbuns ao vivo, o Yes atual consegue honrar seu passado, tocando muito bem os clássicos, e até arriscando algumas novidades. Em estúdio, a banda sofre a falta de Jon Anderson, principal compositor da fase clássica, mas não chega a embaraçar os fãs ou os ex-integrantes com discos ruins (à exceção de Heaven & Earth, possivelmente o pior álbum lançado sob o nome do grupo); Steve Howe confessou que estava inseguro em gravar novos discos após a morte de Chris Squire, mas The Quest saiu-se melhor do que ele esperava – e Mirror to the Sky o agradou ainda mais (com o plus de serem bem-sucedidos comercialmente, pois ambos alcançaram o 22º lugar na Billboard). Os dois álbuns mais recentes, como os do Jethro Tull, não são bons o bastante para aparecer entre os favoritos dos fãs, mas são discos que trazem bons momentos em quantidade suficiente para satisfazer quem gosta do Yes.
YES E JETHRO TULL AINDA SÃO RELEVANTES?
A produção atual dessas duas grandes bandas, certamente, não se compara com a clássica, mas não chega a fazer a gente se perguntar por que eles insistem em continuar. Em ambos os casos, cada uma lançou dois álbuns que agregam positivamente ao seu legado, ainda que muito provavelmente as músicas não venham a sobreviver nos setlists após o encerramento das respectivas turnês. Além disso, “Mrs. Tibbets”, no caso do Jethro Tull, e “Mirror to the Sky”, no do Yes, são músicas surpreendentemente boas para bandas tão veteranas, e ajudam a justificar o lançamento de novos discos. É verdade que ninguém vai tirar Close to the Edge ou Aqualung para colocar qualquer um dos quatro discos recentes, mas pelo menos não são um Under Wraps ou um Big Generator. Ian Anderson e Steve Howe não deixaram suas bandas morrerem, mesmo que falte um Martin Barre para um e um Jon Anderson para o outro, mas não estão envergonhando seu passado ao lançarem novas músicas. Ian Anderson já declarou que não sabe por quanto tempo ainda conseguirá gravar ou fazer shows, mas não dá sinais de quem vá parar. E embora o Yes tenha adiado sua turnê de 2023, tudo leva a crer que a banda ainda irá circular por mais um tempo. Mas se eles encerrarem suas carreiras agora, pelo menos o farão com trabalhos melhores do que J-Tull Dot Com ou Heaven & Earth.
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